Apontando para as paredes da casa onde vive, Aldenôra Gil, 65 anos, se emociona: “O que é meu aqui é só isso aqui, filha”. E, batendo com o pé no chão: “Isso aqui não é meu”. Há mais de 20 anos, ela reside no Jardim Brasil, uma ocupação urbana assistida pela Defensoria desde 2009. A comunidade permanece em situação de conflito e foram muitos os desafios enfrentados ao longo dos 15 anos da atuação defensorial que tem assegurado a permanência dos moradores no imóvel. “Em nenhum momento, nós tivemos outra coisa que não seja a Defensoria no nosso benefício”, afirma a assistida.
O Jardim Brasil é uma das comunidades assistidas há mais tempo pela Defensoria Pública do Estado do Pará. A área era de propriedade da construtora Encol, que declarou falência em 1999 e teve os bens leiloados. O terreno foi ocupado inicialmente pelos próprios funcionários da empresa e foi de um deles que Aldenôra comprou o espaço onde construiu sua casa e até hoje reside, sem saber que se tratava de ocupação irregular. Isso foi em outubro de 2003.
Já no ano seguinte, começaram as ordens para desocupação e, com elas, os embates, alguns bastante violentos, com o Estado. Em 2008, o terreno foi arrematado pela empresa RPJ Estacionamento Ltda e os conflitos se acirraram. O Juízo da Comarca de Goiânia, onde o processo tramitou em razão da falência da empresa Encol, determinou a imissão de posse do terreno. Foi quando a Defensoria paraense foi acionada.
Foi em meio aos conflitos que se iniciou a história de Aldenôra junto à liderança comunitária do Jardim Brasil. Na época, a presidência era ocupada por Manoel de Jesus. “Foi daí que eu vi que ele, sozinho, não ia conseguir. [...]. Todo ano no mês de fevereiro, a justiça estava na porta, sempre com uma carta precatória pra gente desocupar as terras”, lembra a assistida.
Em uma das movimentações, ela conheceu alguém que mudaria o destino da comunidade: uma enfermeira que residia na ocupação. Foi a chefe dela quem indicou o caminho da Defensoria. Assim, teve início a trajetória de 15 anos de assistência jurídica, que tem evitado o despejo das aproximadamente 400 famílias estabelecidas no local.
Em 2010, a equipe da Defensoria viajou para Goiânia e conseguiu que a competência do caso fosse encaminhada para a Comarca de Belém. Já em 2018, a partir da Lei 13.465/2017, a Defensoria formulou o pedido de Regularização Fundiária Urbana (REURB) em favor da comunidade. A coordenadora do Núcleo de Defesa da Moradia, defensora Luciana Albuquerque Lima, explica que a solução do caso do Jardim Brasil é complexa porque envolve não apenas o pedido de REURB junto à administração municipal, mas também um conflito judicializado pela posse da terra, e uma grave questão de sobreposição de registros, envolvendo os município de Belém e Ananindeua.
Para Aldenôra, a luta já se tornou parte do cotidiano, e a fé na conquista do título de propriedade a reanima todos os dias: “Sempre na luta. Sempre. A gente dorme e acorda naquela incerteza. Então, o título, para nós, vai ser grande vitória. Vai ser muito bom na vida de cada um de nós, moradores aqui”, afirma.
Atendimento a comunidades
Atualmente, o Núcleo de Defesa da Moradia assiste mais de 220 comunidades na Região Metropolitana de Belém (RMB). Isso representa um crescimento em relação a 2023, quando foram atendidas 187 comunidades, um número já bastante significativo que totaliza aproximadamente 66.257 famílias e cerca de 13% da população da RMB. As demandas coletivas são apenas uma parte da atuação do Núcleo, que também atende a pedidos individuais de regularização de imóveis.
Uma etapa indispensável aos processos coletivos são as visitas às comunidades, que acontecem tanto no âmbito do atendimento rotineiro do Núcleo para prestação de informações, quanto no calendário oficial da Comissão de Soluções Fundiárias do Poder Judiciário do Pará. Criada em 2023 por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Comissão objetiva a solução consensual dos conflitos fundiários de natureza coletiva e prevê a participação imprescindível da Defensoria.
Assistida pelo Núcleo de Defesa da Moradia desde o último novembro, a comunidade Miramar-Shalom, no bairro do Telégrafo, está em análise pela Comissão. Ela existe desde 2022, instalada em terreno pertencente às Centrais Elétricas do Norte do Brasil. Antes da ocupação, a área estava em situação de abandono, sendo objeto de queixas e denúncias pela grande quantidade de lixo, além do uso do espaço para atividades ilegais. Atualmente, residem no local aproximadamente 139 famílias, totalizando cerca de 380 pessoas. O Núcleo de Defesa da Moradia atua instruindo o pedido de REURB e realizando a defesa da comunidade em processo de reintegração de posse.
“Tem dias que eu quero desistir. Eu tenho família, tenho minhas filhas que moram aqui, entendeu? E eu estou aqui na luta junto com esse povo, que não é nada fácil”, conta Rosângela Monteiro, uma das líderes da comunidade. Além dela, outras cinco pessoas da família vivem na Miramar-Shalom. A assistida imagina o momento em que o processo será concluído com a conquista do tão sonhado título de propriedade.
“Todo mundo conquistando a sua moradia própria. Todo mundo saindo do aluguel, não tendo que todo mês ficar batalhando para pagar aquele aluguel. Eu acho que isso daí seria essencial pra gente e nós vamos ganhar. Nós evoluímos muito depois que a Defensoria Pública entrou no nosso caso”, afirma.
A conquista do título de propriedade
O momento tão aguardado por Rosângela já é realidade para os moradores do Conjunto Carmelândia, no bairro do Mangueirão. Eles estão na fase final do processo de REURB: a emissão dos títulos de propriedade. Na última semana de agosto, o Núcleo de Defesa da Moradia realizou um mutirão em parceria com a Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM), com o propósito de concluir os cadastros individuais de regularização dos moradores da comunidade.
O Carmelândia é acompanhado pela Defensoria desde as primeiras ocupações ocorridas em 1990. O processo administrativo de regularização fundiária urbana dos moradores perante o Executivo Municipal teve início em 2018. Desde então, mais de mil e duzentas ações de usucapião ajuizadas em favor de moradores da comunidade que estavam em tramitação no Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA) foram extintas.
Silvia Setubal, presidente da comunidade Carmelândia, comemora: “Já pegamos mais de mil títulos. E, agora, estão fazendo esse mutirão para o restante do pessoal que ainda não pegou. Então, só temos que agradecer à Defensoria, que é a nossa parceira”. Ela continua: “Antigamente, a gente não tinha documento. Ali, a gente só estava segurando a terra, aquele pedaço... Hoje, eu posso dizer que é meu”.
Complexidade do processo
No Jardim Brasil, Aldenôra Gil aguarda a vez da sua comunidade: “Filha, são 20 anos que eu espero por isso. São 20 anos que a gente luta por isso”. A conclusão do processo de REURB significa não apenas a saída do aluguel e a segurança em ter a propriedade, mas a garantia do acesso a políticas públicas e serviços proporcionados pelo Estado.
Desde a fundação em 2003, a comunidade cresceu bastante. As casas que outrora foram construções precárias de madeira ou até mesmo de plástico, hoje são todas de alvenaria. Todas as ruas são asfaltadas e iluminadas. Entretanto, as melhorias foram feitas por iniciativa dos próprios moradores. Como o Jardim Brasil continua sendo irregular, muitos dos serviços e recursos proporcionados pela administração pública permanecem inacessíveis.
“É um caso extremamente complexo que envolve não só o próprio procedimento e REURB perante o Município, mas um conflito judicializado pela posse da área promovido pelo adquirente do imóvel da massa falida que deixa a comunidade em situação de ameaça de remoção, e a sobreposição de títulos de propriedade envolvendo uma disputa registral entre o título emitido pela Prefeitura Municipal de Ananindeua que deu origem ao título do atual proprietário reivindicante e o título da CODEM, que pode resultar na pacificação do conflito possessório e viabilizar a regularização da comunidade”, explica a defensora Luciana Albuquerque Lima.
O caso do Jardim Brasil é um dos 30 pedidos de REURB atualmente acompanhados pelo Núcleo de Defesa da Moradia. O tempo médio de andamento do processo depende de muitas variáveis, como o tamanho da comunidade, a complexidade de intervenções de infraestrutura urbana exigidas e as possibilidades orçamentárias do Município. Por isso, alguns casos podem demorar mais que outros. Enquanto o processo segue seu curso, a grande satisfação da Defensoria tem sido garantir a permanência dos moradores na área.
“Já tivemos uma grande vitória ao evitar o despejo das famílias, o que seria uma tragédia social, dada a dimensão e consolidação da comunidade”, complementa a defensora.
Embora não esteja mais na presidência comunitária do Jardim Brasil, Aldenôra Gil permanece como conselheira e associada benemérita. Ela não desanima e mantém a fé na caminhada conjunta com a Defensoria.
“Para nós, é muito importante e é muito especial a gente estar com alguém que a gente pode confiar, com alguém que a gente tem aquela credibilidade. Alguém que diz assim: eu vou contigo, eu vou caminhar contigo. A Defensoria, ela é isso. Ela diz: eu vou contigo. Eu vou caminhar contigo; fica do meu lado que eu vou te ajudar. E a Defensoria tem feito isso”, conta a assistida.
Sentada na sala da casa que construiu com muita luta e que mantém com uma crença incansável no seu direito e da comunidade à moradia digna, Aldenôra diz enfaticamente: “Falar do Jardim Brasil é algo muito especial pra mim. Toda vez que eu falo, eu me emociono. Porque é a minha casa. Eu vivo aqui”.
Procure o Núcleo de Defesa da Moradia
Para solicitar atendimento, basta entrar em contato por meio do "Conexão Defensoria", no número (91) 3201-2727. Os atendimentos são realizados na Rua Manoel Barata, nº 50, térreo, no bairro da Campina, em Belém.
Sobre a Defensoria Pública do Pará
A Defensoria Pública é uma instituição constitucionalmente destinada a garantir assistência jurídica integral, gratuita, judicial e extrajudicial, aos legalmente necessitados, prestando-lhes a orientação e a defesa em todos os graus e instâncias, de modo coletivo ou individual, priorizando a conciliação e a promoção dos direitos humanos.
Texto de Juliana Maués
Edição: Carolina Lobo